Quando o sol ainda não raiou completamente sobre as terras vermelhas de Rio Verde, sudoeste goiano, Dona Marinete Silva, 58 anos, já está de pé. Não para ordenhar vacas ou colher grãos sozinha, como fez durante três décadas. Agora, ela acompanha pelo celular o preço do milho na bolsa de Chicago, negocia insumos em grupo com outros 247 cooperados e debate estratégias de marketing para escoar a produção. “Antes eu plantava sem saber o preço que ia receber. Hoje, a cooperativa me ensinou a ser empresária da minha própria terra”, conta, com o orgulho de quem venceu a invisibilidade do campo.
A história de Marinete não é isolada. Ela representa a transformação silenciosa que o cooperativismo agropecuário vem operando em Goiás, segundo maior produtor de grãos do Brasil. Dados do Sistema OCB/GO mostram que o estado conta atualmente com 89 cooperativas agropecuárias ativas, reunindo mais de 42 mil produtores rurais. Juntas, movimentaram R$ 18,7 bilhões em 2024 — um crescimento de 23% em relação ao ano anterior.
Mas os números, por mais robustos que sejam, não contam toda a história. Por trás das estatísticas há vidas reconstruídas, famílias que permaneceram no campo quando tudo indicava o êxodo, e um modelo econômico que desafia a lógica predatória do agronegócio tradicional ao provar que é possível crescer sem deixar ninguém para trás.
O Poder da União Contra os Gigantes
Em Morrinhos, região sul do estado, a Cooperativa Agropecuária Vale do Verdão nasceu em 2019 da necessidade urgente de 35 pequenos produtores de leite que estavam sendo sufocados pelos laticínios. “Eles pagavam R$ 1,20 no litro e vendiam o queijo por R$ 40 o quilo. A gente não conseguia nem pagar a ração das vacas”, relembra João Pedro Alves, um dos fundadores.
A solução veio do SESCOOP/GO, braço educacional do Sistema OCB/GO, que ofereceu capacitação em gestão cooperativista e processamento de laticínios. Hoje, a cooperativa possui uma pequena fábrica, processa 3.200 litros de leite por dia e comercializa queijos, doces e iogurtes com marca própria em mercados da região. O litro de leite pago ao cooperado subiu para R$ 2,35 — quase o dobro.
“Mas não é só o dinheiro”, pondera João Pedro, ajeitando o boné empoeirado. “É saber que meu filho de 22 anos decidiu ficar aqui, estudar zootecnia e tocar a propriedade comigo. Antes, ele só falava em ir pra Goiânia trabalhar em loja.”
A fixação do homem no campo é um dos efeitos colaterais mais significativos do cooperativismo. Segundo pesquisa da Universidade Federal de Goiás, municípios com presença de cooperativas agropecuárias registraram 31% menos êxodo rural na última década em comparação com municípios sem cooperativas.
Inovação Verde: Sustentabilidade Que Dá Lucro
Se há um preconceito a ser desconstruído, é o de que cooperativismo é sinônimo de atraso tecnológico. Na Cooperativa Agropecuária de Catalão, 127 produtores investem coletivamente em inovação que individualmente seria inacessível. A cooperativa adquiriu drones para pulverização inteligente, implantou sistema de irrigação por gotejamento e mantém uma estação meteorológica que fornece dados em tempo real.
“A cooperativa democratiza a tecnologia”, explica Rodrigo Mendes, engenheiro agrônomo e gerente técnico. “Um drone de pulverização custa R$ 85 mil. Nenhum pequeno produtor compraria sozinho. Mas dividido entre 127, fica viável.”
O mais impressionante, porém, é o programa de recuperação de nascentes. Desde 2021, a cooperativa recuperou 34 nascentes em propriedades dos associados, plantou mais de 28 mil mudas nativas e reduziu em 40% o uso de agrotóxicos através do manejo integrado de pragas. A iniciativa rendeu o Prêmio Cooperativa Sustentável 2024, concedido pela OCB Nacional.
“Percebemos que sustentabilidade não é custo, é investimento”, diz Carla Rodrigues, produtora e conselheira da cooperativa. “Recuperamos nossas nascentes e hoje temos água o ano todo. Reduzimos agrotóxico e nossos produtos têm certificação, o que aumenta o preço na venda.”
O modelo ganhou atenção internacional. Em setembro, uma delegação de cooperativas holandesas visitou Catalão para conhecer o projeto. “Eles se surpreenderam porque esperavam ver grandes fazendas. Encontraram pequenos produtores fazendo agricultura de ponta”, orgulha-se Carla.
Educação Cooperativista: A Semente do Futuro
No salão da Cooperativa Mista Rural de Pirenópolis, toda quinta-feira à noite, cerca de 40 pessoas se reúnem para cursos de gestão financeira, marketing digital e planejamento estratégico. Quem ensina são técnicos do SESCOOP/GO e do SENAR, em parceria com a OCB/GO.
“No início, o pessoal desconfiava. Achavam que era perda de tempo, que na roça não precisava disso”, conta a professora Ana Cristina Fonseca, que ministra os cursos há três anos. “Hoje eles trazem notebook, fazem anotações, discutem fluxo de caixa e margem de lucro. É lindo de ver.”
O investimento em educação é um dos pilares do Sistema OCB/GO. Em 2024, mais de 7.800 cooperados participaram de capacitações oferecidas pelo SESCOOP/GO em todo o estado. Os temas vão desde alfabetização digital até sucessão familiar e saúde mental no campo.
“Cooperativismo não funciona sem educação”, sentencia Luiz Fernando Orback, presidente do Sistema OCB/GO. “O cooperado precisa entender que ele não é só produtor, ele é dono do negócio. E dono precisa saber gestão.”
O resultado aparece nos números: cooperativas com programas permanentes de capacitação têm índice de inadimplência 65% menor e produtividade 38% maior, segundo levantamento interno da OCB/GO.
Desafios e Resistências
Nem tudo são flores no universo cooperativista goiano. A cultura individualista do “cada um por si”, ainda forte no campo, é um obstáculo. “Tem produtor que acha que cooperativa é assistencialismo, que alguém vai resolver a vida dele”, observa Sebastião Ferreira, presidente da Cooperativa Agropecuária de Silvânia. “Explicamos que cooperativa é trabalho conjunto, é participação. Mas a ficha demora a cair.”
Outro desafio é a concorrência desleal. Grandes empresas do agronegócio, com poder de lobby e subsídios generosos, pressionam preços e dificultam o acesso a mercados. “Competir com multinacional não é fácil”, admite Sebastião. “Mas temos algo que eles não têm: compromisso com as pessoas e com a terra.”
A burocracia também pesa. Regularizar uma cooperativa exige documentação extensa, registro em múltiplos órgãos e conhecimento jurídico que foge à realidade do produtor rural. “A OCB/GO ajuda muito nessa parte, mas ainda é complicado”, reconhece João Pedro Alves, de Morrinhos.
O Legado Para as Próximas Gerações
De volta à propriedade de Dona Marinete, em Rio Verde, a conversa se volta para o futuro. Seu filho Rafael, 29 anos, formado em agronomia, assumiu a gestão da propriedade e é hoje o cooperado mais jovem da diretoria. “Minha mãe me mostrou que dá para viver bem aqui, com dignidade e lucro”, diz ele. “Não preciso ir para a cidade grande pra ser alguém.”
A frase de Rafael sintetiza a revolução invisível que acontece no campo goiano. O cooperativismo não está apenas gerando renda — está reconstruindo o sentido de pertencimento, devolvendo autoestima e provando que a agricultura familiar não é resquício do passado, mas modelo viável de futuro.
Enquanto o Brasil discute segurança alimentar, distribuição de renda e preservação ambiental, as cooperativas agropecuárias de Goiás, muitas vezes longe dos holofotes e das manchetes, vêm oferecendo respostas concretas. Respostas construídas não em gabinetes refrigerados, mas sob o sol inclemente do cerrado, com as mãos sujas de terra vermelha e a certeza de que, juntos, os pequenos podem ser gigantes.
“Cooperar é resistir”, resume Dona Marinete, olhando para o horizonte onde o sol já se põe. “É resistir ao desamparo, à solidão, à injustiça. É plantar hoje para colher amanhã. E não só soja ou milho. Colher dignidade.”
PARA SABER MAIS
O Sistema OCB/GO oferece orientação gratuita para produtores rurais interessados em formar ou participar de cooperativas. Mais informações pelo telefone (62) 3240-2600 ou pelo site goiascooperativo.coop.br
Dados adicionais:
- 89 cooperativas agropecuárias ativas em Goiás
- 42.000+ cooperados
- R$ 18,7 bilhões movimentados em 2024
- 23% de crescimento anual
- 7.800 cooperados capacitados pelo SESCOOP/GO em 2024

